Tributação, gênero e reforma tributária
As propostas em andamento no Congresso Nacional têm o potencial de agravar as desigualdades nacionais, já que resultam no aumento da tributação sobre o consumo, inclusive sobre os bens e serviços essenciais.
Os debates sobre a viabilidade de uma reforma tributária seguem ocupando a agenda política nacional com foco quase exclusivo na necessidade de simplificação do sistema. Ilações relacionadas à injustiça do sistema atual, que penaliza demasiadamente os mais pobres, não estão presentes no discurso que domina a discussão. O mesmo se diga quanto à criação de mecanismos tributários que sirvam ao enfrentamento da desigualdade estrutural entre homens e mulheres existente na sociedade brasileira. Ao contrário: as propostas em andamento no Congresso Nacional têm o potencial de agravar as desigualdades nacionais, já que resultam no aumento da tributação sobre o consumo, inclusive sobre os bens e serviços essenciais.
Exemplar desse movimento é a PEC 45/2019, que prevê a criação do IBS, imposto sobre bens e serviços, não cumulativo e de alíquota única, em relação ao qual seria vedada a concessão de incentivo fiscal de qualquer natureza. O resultado desse modelo seria um sistema tributário mais regressivo e, assim, proporcionalmente mais oneroso para a população de baixa renda, que é majoritariamente composta por mulheres negras. A solução adotada para mitigar esse efeito estaria na devolução do tributo pago por essa população. Contudo, ainda que esse seja um mecanismo possível, ele não deve ser o único.
Políticas de redistribuição de renda via gasto público são eficazes na redução das desigualdades sociais, mas devem ser bem desenhadas para atingir sua finalidade. A devolução do IBS enfrentará dificuldades práticas e teóricas relevantes, que passam desde a existência de desigualdades econômicas e regionais, que impõem custos de vida e ônus diversos em diferentes regiões do país, até o fato de que tal mecanismo acaba por desconsiderar o mínimo existencial e o princípio da seletividade, cujos fundamentos são constitucionais. Ademais, considerando a complexidade econômica e social do Brasil, entendemos que, mesmo na tributação do consumo, não se pode prescindir da utilização de benefícios fiscais enquanto instrumentos de política pública que podem auxiliar na diminuição das desigualdades sociais e de gênero[1].
À luz desse cenário, o Núcleo de Direito Tributário do Mestrado Profissional da FGV Direito SP, em parceria com a iniciativa Tributos a Elas, formada por procuradoras da Fazenda Nacional, e em conjunto com advogadas privadas e professoras universitárias que constituem o grupo de pesquisas Tributação e Gênero, elaborou um documento que compila propostas diretamente relacionadas com o enfrentamento da desigualdade de gênero via sistema tributário, que podem servir de inspiração para os parlamentares.
Dentre as ideias apresentadas no documento, para além da crítica mais geral à PEC 45/2019 e propostas de redução da tributação incidente sobre bens majoritariamente consumidos por mulheres, como produtos de higiene menstrual, há uma que merece destaque: trata-se da criação de incentivos fiscais para empresas que contratem mulheres chefes de família. De acordo com dados da PNAD-IBGE, colhidos no estudo “Estrutura tributária brasileira e seus reflexos nas desigualdades de gênero”[2], em 1995, 22% das famílias eram chefiadas por mulheres; em 2018, o percentual quase dobrou, passando a 44,3%, próximo ao percentual de homens, que é de 55,7%. Mulheres pretas e pardas são maioria entre as chefes de família, 56%, sendo que as brancas somam 43%.
Pensando nessa realidade, a proposta institui o Programa de Contratação de Mulheres de Baixa Renda Chefes de Família (PCMF), como indutor de comportamentos para redução das desigualdades de gênero, e concede incentivo fiscal no âmbito do imposto sobre a renda das pessoas jurídicas às empresas tributadas com base no lucro real, que tiverem admitido, em seus quadros funcionais, mulheres de baixa renda chefes de família.
Os objetivos do PCMF são induzir comportamentos para redução das desigualdades de gênero; incentivar a contratação de mulheres de baixa renda chefes de família; e possibilitar a inserção ou reinserção das mulheres de baixa renda chefes de família no mercado de trabalho formal. Como mulheres de baixa renda, a proposta remete àquelas inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal, atualmente disciplinado no Decreto nº 6.135, de 26 de junho de 2007, ou outro que venha a substituí-lo.
A proposta foi recentemente transformada em projeto de lei, de autoria da deputada federal Lídice da Mata, entre outras: trata-se do PL 1741/2021[3]. Na semana passada, o parlamento da Argentina aprovou medida semelhante, ao ampliar benefícios fiscais para empresas que possuam mulheres ou pessoas transgênero em seus quadros diretores[4].
A justiça fiscal, que deve ser o fim buscado por uma reforma tributária, não se faz sem a criação de instrumentos para a concretização material – e não meramente formal – da igualdade de gênero. Considerando que gênero é uma criação cultural, e não biológica, diversos instrumentos devem ser utilizados para a modificação das estruturas de desigualdades que permeiam a sociedade brasileira, entre eles o Direito Tributário. Não temos a ilusão de que a tributação vai resolver todos os problemas de desigualdades de gênero no país, mas certamente é um instrumento que não pode ser descartado.
[1] Nesse sentido, inclusive, é a posição recentemente externada pela OCDE, Fundo Monetário Internacional, ONU e Banco Mundial. Em tradução livre, confira-se: “Para a maioria dos países em desenvolvimento, a maior parcela da receita total do governo é derivada de impostos de consumo de base ampla, como o imposto sobre o valor agregado (IVA), que também pode conter vieses implícitos. A natureza ampla do IVA pode aumentar o preço dos serviços, incluindo os que substituem os serviços domésticos. Isto pode criar um desestímulo para que as mulheres trabalhem. Como o IVA de base ampla tem muitas vantagens teóricas e práticas, tais desincentivos são melhor abordados através de subsídios ou do imposto de renda pessoal. Entretanto, muitos VATs também oferecem isenções ou taxas mais baixas de impostos para necessidades como alimentação, educação, assistência médica e cuidados infantis para reduzir a carga sobre os pobres, que também foram consideradas importantes para a igualdade de gênero”. ESTEVÃO, Marcello, et. ali. How tax reform can promote growth and gender equality in the post-COVID era, disponível em: https://www.tax-platform.org/news/blog/Tax-Reform-Gender-Equality-in-the..., acesso em 15 jun. 2021. No original: “For most developing countries, the greatest share of overall government revenues is derived from broad-based consumption taxes such as the value-added tax (VAT), which may also contain implicit biases. The broad-based nature of VATs may raise the price of services, including those that substitute for household services. This may create a disincentive for women to work. As broad-based VATs have many theoretical and practical advantages, such disincentives are best addressed through subsidies or the personal income tax. However, many VATs also provide exemptions or lower tax rates for necessities like food, education, health care, and childcare to reduce the burden on the poor, which have also been found to be important for gender equality. Governments should ensure that tax reforms undertaken to raise revenue do not undermine the affordability of these basic needs. Tax systems can contribute to redistributing income toward low-income households, including those headed by lone mothers, and VAT measures are often needed in countries where direct transfers to low-income households are not possible for administrative reasons. Some scope may exist to consider favorable treatment, under a VAT, of products disproportionately or entirely consumed by women to offset disabilities elsewhere, which meet a basic need and are critical to women’s full educational and workforce participation”.
[2] VIECELI, Cristina Pereira; ÁVILA, Róber Iturriet; CONCEIÇÃO, João Batista Santos. Estrutura tributária brasileira e seus reflexos nas desigualdades de gênero. Disponível em: https://ijf.org.br/wp-content/uploads/2020/07/Artigo-Tributa%C3%A7%C3%A3o-e-G%C3%AAnero.pdf. Acesso em: 14 de jan. 2021.
[3] Os Projetos de Lei podem ser consultados no site da Câmara dos Deputados: https://www.camara.leg.br/busca-portal/proposicoes/pesquisa-simplificada, acesso em 21 jun. 2021.
[4] Disponível em: https://www.boletinoficial.gob.ar/detalleAviso/primera/245673/20210616, acesso em 21 jun. 2021.
*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional da FGV.
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