Pesquisadoras criam maior banco de dados com decisões judiciais sobre crianças e adolescentes

Estudo pode orientar a criação de políticas públicas para diminuir o envolvimento de crianças e adolescentes em atos infracionais, além de auxiliar os tribunais a julgarem esses casos.
Direito
19 Outubro 2023
Pesquisadoras criam maior banco de dados com decisões judiciais sobre crianças e adolescentes

A maneira como a justiça lida com o direito de crianças e adolescentes tem mostrado desafios e controvérsias ao longo dos últimos anos. Diante deste cenário, a Escola de Direito de São Paulo (FGV Direito SP) realizou uma pesquisa sobre o direito das crianças e adolescentes no Brasil. O estudo desencadeou o maior banco de dados sobre este tema já realizado no Brasil, ao analisar mais de 30 anos referentes a todas as decisões judiciais de cortes superiores neste âmbito e a forma como interpretam a prioridade absoluta, desde a promulgação da Constituição, em 1988, até 2019.  

No total, foram analisados mais de 12 mil processos judiciais envolvendo crianças e adolescentes. No Supremo Tribunal Federal (STF) foram 474 decisões colegiadas, ou seja, aquelas que são deliberadas por um conjunto de ministros, e mais 3664 decisões monocráticas, proferidas individualmente por um ministro. No Supremo Tribunal de Justiça (STJ) foram 8408 decisões colegiadas. Ambos os bancos de dados podem ser acessados gratuitamente no site da Escola de Direito de São Paulo (FGV Direito SP). 

Neste portal, também é possível encontrar artigos, relatórios e vídeos sobre o projeto, além de uma publicação que se originou a partir dos resultados da pesquisa. O livro A prioridade absoluta dos direitos de crianças e adolescentes nas cortes superiores foi lançado na sede do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em Brasília, com a presença de diversos juízes da infância do país inteiro. 

O estudo faz parte do grupo de pesquisa “Supremo em Pauta” da FGV Direito SP, que se dedica a pesquisar e analisar o STF e suas decisões. Para realizar este projeto sobre a prioridade absoluta, o grupo de pesquisa contou com financiamento do Instituto Alana, que tem como missão defender direitos das crianças e adolescentes. 

Construindo o maior banco de dados sobre o direito das crianças no Brasil 

A professora da FGV Direito SP, Eloísa Machado de Almeida, que coordenou a pesquisa, detalha a construção da base de dados: “Olhamos para os casos a partir de uma nova classificação. Nós debatemos sobre como classificar cada uma das ações a partir do mérito das decisões e pudemos identificar os achados mais importantes, e aqueles que necessitavam de uma investigação mais aprofundada”, declarou a professora. Segundo Almeida, o maior benefício desta pesquisa é poder observar este universo grande de ações como um mapa capaz de demonstrar como os tribunais foram sendo provocados e reagiram a demandas sobre direitos das crianças e dos adolescentes nos últimos 30 anos”, disse Almeida. 

A pesquisadora reitera que não conhece nenhuma outra pesquisa que possua o mesmo tamanho e amplitude ao investigar esse tema. “Olhamos para cada um dos casos com um olhar especializado sobre o direito da criança e construímos as categorias de temas e subtemas que explicam a trajetória de como as decisões são tomadas”. 

A pesquisa se dedicou a investigar todas as decisões que faziam menção as palavras “crianças” e “adolescentes”, em vez de procurar por “prioridade absoluta”, entendendo que a interpretação da prioridade absoluta pode não ser explícita e, ainda assim, ser essencial para a resolução do caso concreto. “Na construção dos bancos de dados fomos ramificando as decisões, a fim de entender o que cada uma delas expressava sobre a posição desses tribunais”, acrescentou Luiza Pavan, pesquisadora que também atuou no projeto. 

Para criar ambas as bases, Almeida ressalta que não foi utilizado nenhum software ou algoritmo de busca. Em vez disso, as pesquisadoras realizaram o trabalho exaustivo e qualitativo de analisar cada uma das decisões para montar o banco de dados. “Consideramos que o nosso olhar especializado traria mais benefícios para a pesquisa qualitativa”, detalhou. 

Direito das crianças e adolescentes 

Ao investigar como o STF e o STJ têm interpretado a prioridade absoluta nos direitos das crianças e dos adolescentes, a Pavan reitera que a prioridade absoluta garante a concretização dos direitos fundamentais e a afirmação do pleno exercício da cidadania social da criança e adolescente. 

Ela também destaca que é importante ter em mente que o STF e o STJ aplicam a prioridade absoluta no julgamento desses casos, porém, em algumas situações, de uma forma subvertida. “Em casos como, por exemplo, quando há uma disputa judicial que busca aumentar vagas em creche, os interesses das crianças estão garantidos na prioridade absoluta, mas isso muda quando olhamos os casos infracionais, onde a prioridade absoluta passa a ser usada como justificativa para maiores restrições a direitos”, afirmou a pesquisadora. 

De acordo com Pavan, essa subversão do direito das crianças e adolescentes impede que esse tipo de caso na justiça receba uma resposta adequada. Para ela, este cenário gera um afastamento do artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que afirma que crianças e adolescentes sejam tratados pela sociedade, e em especial, pelo Poder Público, com total prioridade, sobretudo na formulação de políticas públicas. A mesma diretriz está exposta no artigo 227 da Constituição. 

“Muitos juízes acreditam que a internação é a melhor resposta ao adolescente que cometeu o ato infracional. Quando olhamos esses casos ao longo dos 30 anos, interpretamos que esses juízes defendem a internação por esses adolescentes estarem em um contexto de vulnerabilidade. Crianças e adolescentes, ao se depararem no tribunal, 

são recebidos sob o viés penal, e não sob o olhar da obrigação do Estado em termos de políticas públicas”, contextualizou a pesquisadora. 

Peso histórico e retrato do futuro 

“A partir da resposta dada pelos juízes a demandas de crianças e adolescentes, foi possível refletir sobre como a prioridade absoluta é interpretada”, afirma Almeida. A pesquisadora também destaca que este cenário pode ter ligação com um fator histórico, que diz respeito a maneira como casos infracionais envolvendo crianças e adolescentes eram julgados pela justiça brasileira antes da Constituição. Ela declara que este tratamento antigo e conservador persiste até os dias atuais. 

“Naquela época, o tratamento jurídico era a internação por qualquer ato que representasse uma situação irregular. Quando vemos a forma como os tribunais vêm lidando com esses casos, é possível perceber que há uma reprodução do modelo anterior a nossa Constituição”, explicou a professora. 

A pesquisadora Ana Laura Barbosa complementa que toda pesquisa empírica ao mesmo tempo que traz algo do passado, também demonstra um retrato para o futuro. “Evidenciar como os tribunais lidaram com esses casos nas últimas décadas pode auxiliar a transformar a maneira como eles olham para esses casos infracionais envolvendo a população infantil. Através desta perspectiva, é possível investir em políticas públicas que afastem os jovens da criminalidade”. 

Casos mais frequentes 

De acordo com o levantamento, os casos mais frequentes que envolvem crianças e adolescentes estão relacionados a estupro de vulnerável, pornografia infantil, atentado ao pudor e exploração sexual. Em diferentes passagens do tempo, também é possível perceber o aumento de diferentes tipos de processos judiciais. “Entre 2018 e 2019 há um aumento nos casos tramitando na justiça em relação a pedidos judiciais para que mães pudessem cumprir prisão domiciliar, no intuito de cuidarem dos filhos em casa”, comentou Pavan. 

Outros casos, como os que envolvem acesso a creche, também são exemplos de ondas de decisões em determinados períodos. Neste sentido, Almeida reitera que apesar de o projeto analisar decisões judiciais dos últimos 30 anos, esta não se trata de uma pesquisa datada. 

“Este estudo é um retrato muito grande de como o direito das crianças tem sido reivindicado nos tribunais. Os macromovimentos de litígio relacionado ao público infantil são temas que ainda não foram superados na nossa sociedade, por isso a importância de evidenciá-los”, alegou. 

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