Soluções tecnológicas monitoram retorno de povos tradicionais a seus territórios
O ano era 2016, quando a usina hidrelétrica de Belo Monte foi inaugurada, ao mesmo tempo em que impactou drasticamente a vida de centenas de ribeirinhos que vivam no entorno do Rio Xingu. De lá para cá, após a situação precária em que foram deixados os povos tradicionais que viviam naquela região, a hidrelétrica continuou funcionando, e até hoje, mesmo após diversos tramites judiciais e manifestações sociais, os ribeirinhos ainda não puderam retornar para casa. Agora, um projeto da Fundação Getulio Vargas, que utiliza de ferramentas tecnológicas de georeferenciamento, pode ser a solução para que os ribeirinhos possam viver novamente ao redor do Rio Xingu, com as condições de vida necessárias para manutenção de seu modo de vida tradicional.
Resultados de uma pesquisa realizada dentro deste projeto indicam potencial para uma grande crise de insegurança alimentar, caso os ribeirinhos não retornem aos seus territórios com as condições de vida asseguradas. Os números demonstram que a produção de frutas nessas comunidades caiu em média 70%, enquanto a produção de peixes diminuiu aproximadamente 30%, além de queda na produção de grãos, carne, verduras, entre outros.
A pesquisadora que está à frente do estudo, Flavia Scabin, explica que nesta nova fase do projeto, os pesquisadores irão retornar ao território com o intuito de monitorar, por meio de ferramentas tecnológicas, as ações por parte do governo, da empresa responsável pela administração da hidrelétrica e do Ibama. Foi o Instituto quem estabeleceu o reassentamento dos ribeirinhos às proximidades do Rio Xingu, de onde foram deslocados no processo de licenciamento da Usina de Belo Monte.
Flavia declara que o objetivo do monitoramento constante é para evitar que os ribeirinhos “sejam deixados para trás”, ao assegurar que nenhuma ação ou política possa gerar discriminação, exclusão e aumento de desigualdades, em diferentes tipos de vulnerabilidade, como raça, etnia, gênero, entre outras. Segundo ela, este ideal está alinhado com a Organização das Nações Unidas (ONU) como uma das principais metas da Agenda 2030 dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável.
Tecnologia no combate à insegurança alimentar
Dentro deste projeto, o conhecimento científico foi somado aos ensinamentos locais, dando origem a uma plataforma capaz de monitorar a qualidade da água, dos peixes e do solo. Além de supervisionar o retorno dos povos tradicionais, a intenção é proporcionar a resiliência das comunidades para que não enfrentem crises sanitárias ou alimentares, por meio do acesso à informação compartilhada em tempo real, a respeito da gestão de adaptação das suas vidas.
“A insegurança alimentar é um dos fatores que mais nos preocupa e em relação a esse aspecto seria possível traçar um paralelo com a situação dos Yanomamis. Segundo um levantamento que realizamos junto a 122 famílias que foram deslocadas da região do Rio Xingu e reassentadas distante do Rio, há a percepção de piora na produção de diferentes tipos de alimentos, da forma como mostra o gráfico abaixo sobre produção de alimentos das famílias que não foram realocadas ao Xingu”, alertou Flavia.
Nota: O universo corresponde a 122 famílias não reassentadas (100%) no Xingu para cada categoria e referem-se apenas ao percentual de menção daquela determinada categoria pelos (as) respondentes. A soma dos percentuais apresentados não totaliza 100% pois um indivíduo pode ter formulados respostas que cabem em mais de uma categoria.
A pesquisadora explica que, diante desta situação, embora a expectativa fosse que a instalação da Usina promovesse o desenvolvimento local, foi possível observar, nessa coleta de dados que realizada em 2020, a diminuição da produção alimentar e o aumento da pobreza, em razão de não ter sido assegurado o direito à manutenção do modo de vida tradicional dessas famílias.
Flavia conta que foi em busca de reverter essa situação que teve origem a plataforma de georeferenciamento chamada SAGUI, que significa “Sistema de Acompanhamento Georeferenciado de Informações”. Trata-se de uma solução tecnológica que foi construída com os ribeirinhos deslocados da região do Rio Xingu, para monitorar diversos parâmetros que compõem a qualidade de vida para aquela comunidade.
“Primeiro realizamos um diagnóstico mostrando quão emergencial era a situação, depois construímos uma agenda de monitoramento que conta com o apoio de soluções tecnológicas e inteligência artificial. Agora, estamos no processo de retornar à comunidade para entender por que os ribeirinhos ainda não voltaram ao seu território e também para garantirmos que quando voltarem, eles possam contar com uma gestão adaptativa, com boas condições de vida asseguradas, e com uma comunidade mais resiliente”.
À beira de uma crise humanitária
Antes de entender o impacto da situação atual, é necessário relembrar que os ribeirinhos foram obrigados a deixar seu território por ser localizado na região que foi escolhida para funcionar como o reservatório da hidrelétrica. A professora Flavia destaca que apesar de o processo de licenciamento servir justamente para avaliar os diversos riscos que uma obra pode ocasionar, no caso da Usina de Belo Monte, os ribeirinhos que viviam no entorno do Rio Xingu foram deixados de fora desta análise e não puderam participar da decisão acerca das medidas que deveriam ser realizadas pela empresa na licença de instalação da Usina.
“Se eles continuassem na região, iriam sofrer com alagamentos e enchentes em suas residências, podendo até morrerem afogados”, disse a professora.
Ela conta que a solução encontrada pela empresa para continuar com as obras e retirar os ribeirinhos da região, foi transferi-los para reassentamentos urbanos construídos pela empresa nas periferias da cidade de Altamira, no Norte do Pará. No entanto, os ribeirinhos não se adaptaram àquela região, visto que não havia nenhuma similaridade com seu estilo de vida e cultura, de um povo que tinha como a pesca uma das principais atividades.
A antropóloga Ana De Francesco, que realizou sua tese de doutorado junto ao trabalho feito com a população do Xingu, declara que a comunidade tinha forte vínculo com o território, e ao saírem de maneira forçada, deixaram de viver do extrativismo do solo e da água, para se tornarem parte da população pobre da periferia de Altamira.
“Faz quase 10 anos que eles foram obrigados a desocupar seu território e existe um termo que denomina o ocorrido como deslocamento ontológico. Significa que o mundo em que eles viviam deixou de existir. Essas pessoas perderam a base material de suas vidas, todas as relações sociais, econômicas e simbólicas foram modificadas justamente porque todo aquele mundo era baseado em memórias, paisagens, além do próprio Rio em si, e tudo isso foi modificado após a construção da Usina. Foi uma mudança radical de vida”, comentou a antropóloga que estuda e trabalha em conjunto com essa comunidade desde 2014.
A pesquisa demonstra que a transferência dos ribeirinhos para a região periférica de Altamira ocasionou em mais vulnerabilidade e pobreza para esta população. Perante esta situação, o Ministério Público Federal (MPF), em uma ação com a Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC) e o Conselho Ribeirinho, determinou que os ribeirinhos voltassem para sua comunidade.
E é justamente neste cenário que a pesquisa da FGV entra, pois segundo a pesquisadora, é importante garantir que eles tenham condições de moradia e assistência social não somente para que melhorem em relação a sua atual situação, mas também para que os fortaleçam a ponto de evitar que passem por crises humanitárias.
Impactos e consequências na vida dos ribeirinhos
Entre diversas consequências que foram enfrentadas pelos ribeirinhos da região do Xingu, estão a qualidade dos peixes, que nunca mais foi a mesma após a contaminação dos rios, além de ter diminuído em muita sua quantidade.
A professora Flavia afirma que, ao serem consultados sobre a produção de alimentos antes e depois do deslocamento compulsório, das 122 famílias deslocadas de forma compulsória e não reassentadas nas proximidades do Rio, apenas 6% mencionou ter suficiência na produção de farinha, 13% de verduras e 59% do peixe, sendo possível identificar uma piora em relação ao que tinham antes.
Ana De Francesco acrescenta que uma suspensão da vida como esta faz com que essas pessoas percam a capacidade de planejar o próprio futuro. “Isso os leva ao adoecimento mental, aos impactos na saúde, aos impactos na rotina, na sua economia, é toda uma cadeia de consequências simultâneas e interligadas”, diz a antropóloga.
Além disso, há os desafios de lidar com a invasão de gado nas áreas destinadas ao reassentamento das famílias ribeirinhas. Esses animais, segundo alerta a pesquisadora Flavia, costumam gerar grande destruição nas comunidades. Mas se engana quem pensa que as consequências são somente referentes a danos físicos e de infraestrutura. Flavia relembra que no início da construção da usina de Belo Monte, ocorreram inúmeras denúncias de abuso sexual e de trabalho infantil.
“Ao longo desse tempo houve um dano irreparável a saúde mental desta população. E por mais evidente que seja, fica difícil de demonstrar esses fatores de forma concreta. Porém, no que diz respeito ao impacto ambiental, referente a qualidade das águas e dos peixes, os ribeirinhos passarão a contar com ferramentas tecnológicas, baseadas em Inteligência Artificial, para mensurar os impactos sofridos e viabilizar a cobrança por parte da gestão pública”, explicou a pesquisadora.
Direitos humanos e resiliência da comunidade
Preocupados com a situação dos ribeirinhos, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) foi quem convidou diversos cientistas de diferentes Universidades Brasileiras, entre elas a FGV, para contribuírem com a construção de uma solução que pudesse assegurar os meios de vida e os direitos dos ribeirinhos deslocados compulsoriamente.
“O objetivo era oferecer diagnóstico sobre as condições de vida dos ribeirinhos nas mais diversas dimensões, em relação à sua saúde, à sua alimentação, dentre outras. Os resultados dos estudos mostraram a necessidade de que os ribeirinhos pudessem retornar ao Rio como única forma de assegurar os seus direitos ao modo de vida, à alimentação, à saúde, etc”, conta a pesquisadora Flavia.
Tamara Hojajj, pesquisadora que também atuou no projeto, afirma que é preciso pensar em uma forma de tornar essa comunidade menos vulnerável a riscos, para que eles possam ter a capacidade de se desenvolverem e viverem de acordo com seus próprios padrões de bem-estar.
“É necessário que o conceito de bem-viver, considerado neste projeto, esteja alinhado com o ponto de vista deles, mas para alcançar isso, precisaríamos incluir os ribeirinhos no centro do debate, a fim de entender, em primeiro lugar, sobre o que iríamos reivindicar como condições de qualidade. E foi assim que surgiu o Conselho Ribeirinho, que conta com a participação de membros da comunidade que participam do debate sobre a negociação de suas próprias vidas”, disse Tamara ao ressaltar que este é o primeiro conselho deste tipo a ser criado no Brasil.
A pesquisadora Flavia lembra que foi uma decisão do Ibama de incluir os ribeirinhos dentro do plano de reassentamento, determinando que as operações da Usina não poderiam mais acontecer, caso a empresa não providenciasse as reinvindicações feitas por eles. Mas até o momento, pouquíssimos conseguiram retornar a sua região de origem.
“A Usina está em pleno funcionamento, mas até hoje os ribeirinhos não retornaram ao seu território. Em nosso projeto, após fazer um diagnóstico da situação, construímos uma agenda de monitoramento, por meio de ferramentas tecnológicas, para averiguar se de fato os territórios deles possuem boas condições que assegurem sua qualidade de vida e se há mecanismos para realizar a gestão adaptativa do território, de forma a garantir o retorno e a permanência destas comunidades”.
Reconfiguração de um mundo perdido
Fora de seu território desde 2014, cerca de 200 famílias aguardam para poderem retornar aos arredores do Rio Xingu. Nos documentos realizados pelo Conselho Ribeirinhos, aprovados pelo Ibama, consta todo um planejamento adaptado às suas realidades.
“Estamos falando de planejamento de casas, de quem vai morar perto de quem, de reconstrução de vizinhança e da vida em comunidade em si, além do plantio da vegetação que havia ali. São muitas propostas que tentam reconfigurar um mundo perdido”, disse a antropóloga Ana.
Enquanto este processo se dá de forma parcial, os pesquisadores continuarão monitorando a situação para garantir os direitos e a qualidade de vida dos ribeirinhos. Para Ana, é de fundamental importância a atuação dos pesquisadores junto aos moradores locais, em que há a troca de conhecimentos.
“Neste processo, os pesquisadores levam o conhecimento teórico e as metodologias, para que, em campo, sejam somados às perspectivas e necessidades locais. Isso gera conhecimentos essenciais para compreender os modos de vida e os impactos de políticas de desenvolvimento econômico”.
Conforme ela relata, o conhecimento é construído de forma colaborativa, com a participação de pesquisadores da FGV e dos pesquisadores locais, que são também membros das comunidades tradicionais. “Temos os nossos pesquisadores trabalhando em conjunto com as pessoas que possuem um notório conhecimento daquela cultura. Buscamos construir soluções adequadas aos contextos locais e que sejam incorporadas por essas pessoas”, concluiu a antropóloga.
Para conhecer mais sobre essa e outras pesquisas, acesse o site do Centro de Direitos Humanos e Empresas (FGV CeDHE).
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