Ciências Sociais

bell hooks nos deixou

Gabriela de Brito Caruso

A partida de bell hooks desse mundo, no final do ano passado, foi sentida nos quatro cantos do globo. Em 15 de dezembro de 2021a, internacionalmente reconhecida, intelectual feminista faleceu em sua casa, rodeada de amigos e família. Ainda que tenha partido cedo demais, aos 69 anos, nos deu tanto em vida que parece haver mais a se agradecer do que lamentar quando lembramos seu nome. Além de extensa produção bibliográfica que seguirá impactando pessoas por décadas a vir, hooks deixou-nos um legado ao qual perseguir.  

O pseudônimo de Gloria Jean Watkins é uma homenagem à sua avó. O nome belll hooks, grafado todo em minúsculas, é um posicionamento político da recusa egóica intelectual e de resgate das vozes apagadas do passado. Sua vasta produção articulava as relações entre o imperialismo econômico, a supremacia branca e o patriarcado, tornando-se referência fundamental para todos que buscam compreender os entrelaces entre raça, classe e gênero nas práticas culturais, acadêmicas, subjetivas e cotidianas.

A partida de hooks não foi como a de outros intelectuais, sua passagem teve um outro peso. Não nos deixava apenas uma grande mente, com trabalhos consagrados. Ainda podemos ler todos seus livros. Existe algo específico em hooks que toca seus leitores de maneira diferente.

Em primeiro lugar, a escrita didática usada por ela para tratar assuntos complexos, dando-lhe capacidade para ultrapassar os muros intelectuais, penetrando nas mais diversas camadas da sociedade civil, democratizando o conhecimento antes selado à bolha acadêmica. hooks chegou onde a obra de muitos intelectuais não conseguiu. Em “E eu não sou uma mulher?”, traz textos pioneiros do movimento negro e do movimento feminista para ilustrar a desconsideração da questão da mulher negra em suas lutas por direitos civis e sociais.

Evidenciou como o movimento feminista pensava a si mesmo a partir da imagem e experiências da mulher branca, assim como o movimento negro pensou a si mesmo a partir da imagem e experiência do homem negro. hooks deu as bases para pensarmos em como a experiência simultânea a interconectada do racismo e da misoginia afeta de maneira muito particular as mulheres negras. Nem a “luta das mulheres” nem a “luta dos negros”, da maneira que eram pensadas, seriam o suficiente para sua libertação. Em seu trabalho resgatou as vozes de pioneiras negras nas lutas pelo direito ao voto feminino e negro nos Estados Unidos, como Sojourner Truth, cujo discurso dá nome ao livro.

Em segundo lugar, sentimos intensamente sua partida pois perdemos uma intelectual que procurou mudar o mundo não só através das palavras, mas também de atos. Em “Ensinando a Transgredir” resgatou a importância da prática feminista e antirracista no ensino, no chão da sala de aula. Inspirada em Paulo Freire, hooks ousou levar a sério a educação como libertação, e sabia que o entusiasmo e o prazer em aprender deveriam ser resgatados. A sala era pra ela o espaço que oferecia as possibilidades mais radicais na academia.    

Havia algo em hooks que tocava fundo o leitor e os animava para a ação. Ela nos fazia acreditar que era possível agir agora, dentro do nosso escopo, para ser melhor e construir uma sociedade melhor. Acreditava nisso sem nunca descartar a força excruciante e interligada com as quais os sistemas de opressão agem sobre nossas vidas, sem nunca descartar o coletivo.

O terceiro aspecto da obra de hooks é o que faz possível que os dois primeiros funcionem tão bem. Sua escrita, caracterizada pelo amor e senso de justiça social, trazia sempre as marcas de suas experiências. hooks falava de si, de ter estudado em escola segregada e dos seus sentimentos ao deparar-se com as aulas herméticas do ensino superior e da pós-graduação. Suas colocações, no entanto, não eram anedotas pessoais ou desvios da escrita acadêmica. Ela usava sua experiência para contextualizar escolhas e exemplificar preocupações que orientavam seu trabalho e, com isso, possibilitava ao leitor acesso a questões complexas e abstratas por meio uma leitura empática, visceral e prazerosa.

Aqueles tocados pelos escritos de bell hooks podem nunca tê-la visto, ouvido ou tocado, mas sentem que perdem um pedaço de si, uma interlocutora que nos ajudou a ser quem somos hoje.

Ainda desconhecemos como sua ausência nos irá transformar, mas sabemos que, em seu nome, devemos segurar a primavera entre os dentes. Estamos certos que sua influência não acaba aqui e que é nosso dever espalhar as incontáveis lições que nos deixou.

“Nenhuma escritora negra nesta cultura pode escrever “demais”. Na verdade, nenhuma escritora pode escrever "demais" ... Nenhuma mulher jamais escreveu o suficiente.” – bell hooks em remembered rapture: the writer at work, 2013.

Referências:

hooks, bell.  remembered rapture: the writer at work. Henry Holt and Co, 2013.

hooks, bell. Ensinando a transgredir: A educação como prática da liberdade. WMF Martins Fontes; 2ª edição, 2017

hooks, bell. E eu não sou uma mulher?: Mulheres negras e feminism. Rosa dos Tempos; 9ª edição, 2019

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