Direito

Proposta de 30% das vagas em casas legislativas para mulheres é retrocesso, revela documento da FADPM

Gabriela de Brito Caruso, Ligia Fabris

Em anos pré-eleitorais, o assunto da reforma política volta à pauta do Congresso brasileiro e este ano, muitas alterações nas regras relacionadas à participação política feminina foram propostas. No entanto, o que às vezes é propagandeado como avanço, esconde cavalos de tróia que afetam particularmente os direitos políticos conquistados por grupos minoritários. É isso que demonstra a Nota Técnica n. 2 da Frente pelo Avanço dos Direitos Políticos das Mulheres (FADPM) elaborada por Teresa Sacchet (PPGNEIM, UFBA), Ligia Fabris, (FGV Direito Rio), Michelle Ferreti (Instituto Alziras) e Clara Araújo (PPCIS/UERJ).

Um desses cavalos de tróia é o PL (Projeto de Lei) 1.951/21, do senador Angelo Coronel (PSD-BA), aprovado no dia 14 de julho no Senado, que segue agora ao exame da Câmara dos Deputados. O texto determina porcentagem mínima de cadeiras (na Câmara dos Deputados, assembleias legislativas dos estados, Câmara Legislativa do Distrito Federal e câmaras municipais), a serem preenchidas por mulheres.

Uma porcentagem mínima de cadeiras a serem preenchidas por mulheres soa como um grande avanço. No entanto, como demonstra a Nota Técnica, o PL esconde dispositivos que enfraquecem a legislação até então adotada, substituindo parte das regras existentes, conquistadas por essa minoria política, por uma proposta ínfima de assentos que não melhora e até pode piorar o percentual de participação feminina na política brasileira. Percentual este que ainda figura como um dos mais baixos da América Latina apesar dos avanços nos últimos anos

O texto original determinava que 15% das vagas para câmaras sejam ocupadas por mulheres. No entanto, como demonstra a Nota, no cenário atual as mulheres já correspondem a 15% das empossadas na Câmara dos Deputados e 14% no Senado. O PL foi alterado pelo relator Carlos Fávaro (PSD-MT), que estabeleceu objetivo de ao menos 30% das vagas para mulheres, a ser alcançado de forma gradativa, estabelecendo o mínimo de 18% das cadeiras nas eleições de 2022 e 2024; 20%, nas eleições de 2026 e 2028; 22%, nas eleições de 2030 e 2032; 26%, nas eleições de 2034 e de 2036; e 30%, nas eleições de 2038 e 2040.

Segundo a proposta atual, o percentual dos 30% que são hoje o mínimo de candidaturas, só será revertido em assentos em 2038. Assim, longe de ser um incentivo à participação política das mulheres, como se apresenta, a proposta coloca um freio no já lento avanço que vinha se formando. De acordo com a nota, os 30% correspondem ao que, via de regra, é o percentual de referência inicial em países e organizações que adotam cotas numa perspectiva gradual (Dahlerup, 1988), e não o máximo, como estipulado na proposta.

Aprovada no Senado, a proposta também altera a obrigatoriedade da observância de cota mínima de 30% para as candidaturas. Segundo a Nota Técnica No 2 da FADPM, a proposta substitui o termo atual “preencher” (adotado em 2009 para evitar manobras partidárias que burlavam a cota) para o termo original permissivo “reservar”, tanto para se referir aos 30% de candidaturas quanto aos 15% de cadeiras. Isso possibilitaria por parte dos partidos a alegação, como fizeram no passado, que não têm qualquer obrigação de efetivar os percentuais previstos, pois “reservar” não implicaria preenchê-las. Assim, de acordo com as autoras da nota, a própria escolha do vocabulário explicita um retrocesso de pelo menos uma década.

O projeto mantém a regra que estipula que um mínimo de 30% dos recursos devem ser dirigidos às candidaturas femininas. No entanto, de acordo com as autoras da nota, apesar de parecer uma benesse, isto implicaria sair da moldura estabelecida pelo STF em 2018, de equivalência entre candidatura e financiamento. Isso poderia abrir possibilidades para um novo questionamento jurídico sobre esse dispositivo, dando espaço para um retrocesso ainda maior se reivindicada a equivalência (ao percentual) de atribuição de recursos, tanto de dinheiro como de propaganda.

O Brasil já conta com mais de uma década de política de cotas, os 30% de candidaturas são o mínimo real que já temos. Assim, qualquer proposta que se inicie abaixo dos 30%, seja em candidaturas ou assentos, representa um retrocesso aos direitos já conquistados. O avanço em relação à participação de mulheres na política se dá pelo fortalecimento e aperfeiçoamento das regras existentes, assim como pela a construção de mecanismos de controle efetivos que assegurem a sua mais adequada implementação e funcionamento.

Por isso a Nota Técnica No 2 da FADPM sinaliza esta proposta como uma grave ameaça aos direitos políticos recém conquistados:

“A relativização da obrigatoriedade das cotas de gênero desfaz simultaneamente as duas pedras fundamentais dos maiores e mínimos avanços que tivemos em nossa história: lançamento efetivo mínimo de 30% de candidaturas com enforcement forte (obrigação legal e punição em caso de descumprimento) e a equivalência de recursos para essas campanhas no percentual mínimo de 30%, de forma a que eles possam tornar suas candidaturas competitivas e, assim, impulsionar a entrada de mais mulheres na política.” (p.8)

Portanto, quando falamos de participação política das mulheres, todo cuidado é pouco. Como a Nota demonstra, o que se apresenta como avanço pode conter a chave do retrocesso. Neste caso, aceitar os 30% de assentos de maneira escalonada como benesse é equivalente a comprar gato por lebre. 

Referências:

DAHLERUP, Drude. From a small to a large minority: Women in Scandinavian Politics. Scandinavian Political Studies. Volume 11, nº 4, 1988, pp. 275-298.

SACCHET, Teresa; FABRIS, Ligia; FERRETI, Michelle; ARAÚJO, Clara. Nota Técnica nº 2, O QUE ESTÁ EM JOGO PARA AS MULHERES NA NOVA PROPOSTA DE REFORMA ELEITORAL?. Frente pelo Avanço dos Direitos Políticos das Mulheres, 2021.

 

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Autores

  • Gabriela de Brito Caruso

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